Sulanca: do retalho à passarela
A feira que movimenta imenso mercado de moda em cidades do interior de Pernambuco busca novos significados.
Sulanca: do retalho à passarela
A feira que movimenta imenso mercado de moda em cidades do interior de Pernambuco busca novos significados.
CAIO BRAZ, do PRONTO JORNAL, em matéria especial para a FFW
de Recife, Pernambuco.
Foi nos anos 1960, em pleno agreste de Pernambuco, que nasceram os primeiros movimentos de um sistema produtivo que mudaria a economia, a estética e a identidade da região. Chegavam, do Sudeste, os retalhos rejeitados da indústria paulista: restos de helanca, malha sintética de baixo custo. Da união das palavras, sul + helanca, surgiu o neologismo sulanca, para denominar um novo sustento e um sistema de produção improvisado e descentralizado que, a partir da cidade de Santa Cruz do Capibaribe, criou uma nova cena comercial.
Santa Cruz, como é conhecida, é uma cidade de 120 mil habitantes, distante três horas de Recife que desafiou a seca e o esquecimento para se tornar o segundo maior polo têxtil do Brasil, segundo o SENAI. Esse feito tem nome, origem e identidade: Sulanca.
A Feira da Sulanca é um grande mercado popular de roupas e confecções que acontece semanalmente em cidades do Agreste de Pernambuco. Funciona como um centro de comércio atacadista e varejista, onde pequenos e grandes fabricantes, costureiras e comerciantes vendem diretamente suas peças para compradores de todo o Brasil, especialmente do Norte e Nordeste.
Mas a Sulanca não é apenas uma feira. É um sistema. Um modo de fazer que uniu necessidade e criatividade. À margem do investimento público e longe dos centros de poder, formou-se um parque industrial sob o tórrido sol do agreste. Era ali, entre galpões, costureiras, comerciantes, caminhoneiros, poeira, forró e carne de bode, que se forjava uma economia baseada no coletivo – e, por que não dizer, em uma tecnologia nordestina.
Helanca em trânsito
Os retalhos de helanca eram considerados sobras de produção ou materiais sem valor comercial pelas grandes indústrias paulistas. Mas no Agreste de Pernambuco, esses resíduos se transformaram em matéria-prima essencial.
Os comerciantes especialmente de Santa Cruz do Capibaribe, começaram a viajar para São Paulo de ônibus ou caminhão para comprar sobras de tecidos a preços muito baixos. Com o tempo, atravessadores paulistas também passaram a enviar essas sobras diretamente para o interior de Pernambuco, desenvolvendo ali um mercado alternativo.
A helanca era um tecido fácil de costurar, não desfiava com facilidade e servia bem para roupas de preço popular. Famílias inteiras trabalhavam em regime de mutirão para costurar e revender as peças, criando uma cadeia de produção doméstica e artesanal.
Preconceito e estigma
Durante décadas, o termo “sulanqueiro” carregou estigmas. Era usado de forma pejorativa, associado à informalidade e à baixa qualidade. Hoje, pesquisadores do tema reivindicam a Sulanca como símbolo decolonial de força produtiva.
Sem os retalhos dos anos 1960, não se teria formado o sistema industrial de moda que hoje fatura cerca de 6 bilhões de reais. A título de comparação, o pólo da sulanca hoje fatura mais do que o Porto Digital, aclamado pólo de tecnologia do Recife Antigo, com presença de empresas internacionais como a Accenture.
Com o tempo, a Feira da Sulanca cresceu e se espalhou: alimentou a criação do Moda Center Santa Cruz, enorme centro de moda que funciona como shopping e sede da feira, e que até hoje persiste com seus stands, e chegou até a Caruaru.
Hoje, surgiu uma nova geração, filhos dos pequenos empresários, que hoje movimentam o polo com redes sociais, digitalização de processos, presença de influenciadores e coleções autorais. É a Sulanca 4.0.
Rodolfo, 36 anos, é filho de uma costureira da Sulanca e cresceu em meio à produção de malhas na sala de casa, em um ambiente marcado mais pela sobrevivência do que pelo empreendedorismo. Foi o primeiro da família a acessar o ensino superior e seguir uma carreira fora da costura — embora carregue esse universo como referência central. Formado em publicidade, adaptou o conhecimento acadêmico à realidade prática do Agreste. Hoje, atua como criador de conteúdo, gerencia mais de 5 perfis de redes sociais de empresas e lojas de moda da região, acompanhando de perto as transformações do mercado.
“Não é uma feira de mangaio – a Sulanca tem múltiplas representações: estéticas, históricas. Na mesma vizinhança podemos encontrar uma fábrica com corte a laser – e uma facção com gente aparando a ponta de linha sob a luz do candieiro.”, conta Rodolfo
Antes do upcycling, a tecnologia de reaproveitamento brasileira
Muito antes da palavra upcycling virar tendência em desfiles europeus ou conceito em apresentações de marketing, o Brasil já fazia isso: do nosso jeito, com nosso vocabulário, entre a inventividade, a gambiarra e a sobrevivência. A Sulanca é ,na essência, uma tecnologia brasileira de reaproveitamento. Reivindicar o valor da sulanca é também reconhecer as tecnologias sociais brasileiras, que nasceram fora dos centros de poder, mas que carregam soluções criativas e legítimas.
Para Rodolfo, a associação entre Sulanca e upcycling pode parecer natural à primeira vista, mas parte de uma lógica equivocada. O upcycling nasce como uma resposta consciente à crise ambiental e aos excessos da indústria. Já a Sulanca não surgiu com essa intenção — seu ponto de partida é a necessidade.
No Agreste, o uso de retalhos não era um gesto ecológico, mas uma forma de sobrevivência. E mesmo hoje, com todos os avanços tecnológicos e acessos financeiros, a sustentabilidade ainda não é premissa: se a malha for barata, ela será priorizada.
Mesmo sem pensar no conceito original de sustentabilidade como ponto de partida décadas atrás, há de se reconhecer a sua presença: o ato de reaproveitar matérias desprezadas foi o pontapé para iniciar o tão sonhado processo de economia circular e com isso, salvar a vida de muitas famílias. E não é para isso, então, que serve também a sustentabilidade?
10 desfiles inspirados na Sulanca
A Sulanca foi, portanto, a espinha dorsal do Moda Fenearte, vertical de moda da 25ª edição da maior feira de artesanato da América Latina. São ao total 10 desfiles, nos dias 12 e 19 de julho, no Centro de Convenções de Pernambuco, das etiquetas, estilistas ou coletivos: MAPE, Coisas de Thi, Período Fértil, Rota do Mar, Concurso Desafio Mape, Feitas de Retalhos, Buco, Secretaria da Mulher de Pernambuco, Jorge Feitosa e Fenearte Inspira, este último sob a assinatura do editor de moda e stylist Nestor Mádenes, um dos mais importantes fazedores de moda da região Nordeste.
Com 36 anos de moda na bagagem, Nestor enxerga o tema da Sulanca como inevitável para os desfiles da Fenearte 2025, afinal, ela representa o coração do fazer têxtil pernambucano. Mas alerta que o desafio agora é outro: como atualizar esse grande movimento cultural sem perder sua essência? Com décadas de vivência no Agreste e no Polo de Moda, Nestor defende que o segredo está na união entre os criativos e a indústria.
“É justamente nessa moda feita de pedaços — como definiu Jackson Araújo — que reside a força de um futuro mais autoral, contemporâneo e coletivo.”, conta Nestor.
Entre os destaques nos desfiles, está o estilista Jorge Feitosa, sulanqueiro de nascimento e designer de formação, que apresenta a coleção “Da Terra da Sulanca”, contando sua história de vida e do movimento sulanca.
“Nasci em Santa Cruz e sempre enxerguei a moda através dos retalhos. Só fui entender entendi que um tecido se vendia em rolo com quase 10 anos de idade. A partir da sulanca eu enxerguei o mundo.”
Jorge também é acadêmico, mestrando na EACH-USP e atualmente desenvolve uma pesquisa com o objetivo de aprofundar o tema da sulanca e ampliar os saberes da moda nacional, e principalmente, da moda nordestina. “Sulanca também é artesanato, é design projetivo, e nunca foi reconhecido como tal. Sempre foi colocada à margem. Até hoje eu preciso lidar com o fato de que acham a minha roupa moderna quando não sabem de onde eu sou, e a partir do momento que descobrem que sou nordestino, chamam minha roupa de regional.”, relata.