Pista parada: ninguém mais dança?
Em um mundo hiperconectado, performático e ansioso, o simples ato de dançar em público (talvez) está sendo deixado de lado.
Em um mundo hiperconectado, performático e ansioso, o simples ato de dançar em público (talvez) está sendo deixado de lado.
Pista parada: ninguém mais dança?
Em um mundo hiperconectado, performático e ansioso, o simples ato de dançar em público (talvez) está sendo deixado de lado.
Em um mundo hiperconectado, performático e ansioso, o simples ato de dançar em público (talvez) está sendo deixado de lado.
A pista está cheia, o som está alto, o DJ está tocando. E, ainda assim, a vibe permanece morna. Em um cenário onde festas se multiplicam, algo parece ter mudado: dançar deixou de ser uma certeza. Tyler, the Creator lançou um disco inteiro em nome do movimento, depois de perceber que seus amigos pararam de se soltar com medo de virar meme.
O que antes era uma resposta quase automática ao som, agora parece travado por novas dinâmicas sociais. A espontaneidade deu lugar à hesitação. E uma dúvida ecoa entre produtores, DJs e quem ainda se arrisca na pista: as pessoas realmente pararam de dançar?
Entre o corpo e a câmera
Parte dessa transformação pode ser lida no reflexo da tela do celular. Se antes dançar era uma forma de extravazar e se conectar com o outro, hoje é comum ver pistas ocupadas por corpos imóveis, muitas vezes com olhares fixos na luz azul da tela do celular que virou escudo e companhia – um jeito de escapar da vulnerabilidade do movimento. DJs relatam o incômodo: a pista está cheia, mas a atenção está em outro lugar. A música não compete apenas com a insegurança, mas com a distração digital. O corpo, nesse cenário, parece ter perdido prioridade.
Yukari Minami, estrategista de marca na Syntese e na Boma, aponta: ‘‘Com o celular na mão, tudo é estímulo imediato, em documentar, postar, compartilhar, buscar validação. O foco se desloca do sentir para o mostrar, às vezes sem equilíbrio, tornando a vivência mais superficial e menos presente.’’ Kaso, membro do coletivo Rebu Digital e um dos nomes por trás da festa Lovecore, concorda: “A preocupação de registrar tudo influencia também, não dá pra estar 100% presente na música enquanto pensa num enquadramento de vídeo.”
O paradoxo da Geração Z
Essa retenção corporal conversa diretamente com um dado de comportamento que vem se confirmando nos últimos anos: a Geração Z é a que menos sai à noite e menos consome álcool. A FFW já abordou esse deslocamento de prazer – do rolê noturno para experiências como corridas matinais, yoga, autocuidado e sobriedade ativa. Ainda que essas escolhas estejam ligadas a uma nova forma de bem-estar, também sugerem um certo distanciamento da vida noturna como território de liberdade física. Ir à festa, sim. Dançar, nem sempre.
“Acredito que a pandemia acelerou esse processo de amadurecimento, de visão de prioridades ao estilo de vida. Vejo uma geração que não é mais tendência, é o presente ativo no mercado e na cultura, que acumula responsabilidades e toma decisões mais concretas’’, explica Yukari que completa: “A Gen Z não parou de ir em festas, mas prioriza por gastar energia com propósito em lugares que fazem sentido para o que são hoje.”
A dança virou conteúdo?
A ironia dessa transformação é que nunca se viu tanta dança sendo produzida – na internet. O TikTok transformou o gesto em coreografia, o momento em vídeo, o movimento em métrica. Mas se as danças performáticas ocupam a timeline, a dança espontânea parece ter sido deixada no rascunho. Em vez de dançar para sentir, dança-se para performar. E a pista de dança, que antes era espaço de libertação, passou a funcionar quase como uma vitrine.
Tyler, The Creator quer que a gente volte a dançar
Em ‘‘Don’t Tap the Glass’’, lançado em 21 de julho, Tyler, The Creator propõe uma retomada da espontaneidade, do movimento e da liberdade – tudo o que a cultura de registro constante parece ter sufocado. ‘‘Quantas partes do nosso espírito humano foram mortas por medo de virar meme só por estarmos nos divertindo?’’, escreveu o artista, ao comentar como o receio de ser filmado tem inibido até comportamentos básicos como dançar. Na listening party sem câmeras que promoveu, Tyler testemunhou essa liberdade coletiva em ação – e transformou em música um chamado urgente por reconexão.
Pressão, exposição e autoconsciência
Nesse novo palco social, dançar exige mais do que coragem: exige segurança. Não física, mas simbólica. O medo de ser filmado, julgado ou viralizar por ‘‘dançar estranho’’ tem paralisado muita gente. E se antes o constrangimento durava o tempo da festa, hoje ele pode viver eternamente em um story, um reels, um comentário. A exposição constante redesenha o que é permitido – ou não – para o corpo em público. Dançar, agora, pode parecer arriscado demais.
“A maioria das pessoas tem uma imagem cuidadosamente curada na internet e ficam com medo de serem vistos agindo de uma forma que não seja condizente com aquela performance’’, explica Kaso.
Mas há pistas que ainda queimam
Por outro lado, é preciso cuidado ao generalizar. Existem muitas festas onde a dança ainda é centro – e corpo ainda é rito. Bailes de reggae e dub em comunidades periféricas, funks em quebradas, festas de techno com sinal ruim de propósito: ali, o movimento segue vivo. A diferença, muitas vezes, está no tipo de festa, no recorte do público e no ambiente criado. Em alguns casos, a arquitetura do espaço separa pista e lounge; em outros, a curadoria sonora e o controle de acesso moldam a experiência. A pista ainda pulsa. Mas não em qualquer lugar.
Yukari cita a The Green Room como exemplo: “Na entrada é distribuído uma locker bag para guardar o aparelho, dando um propósito claro à experiência. As pessoas se entregaram ali e mesmo sem ninguém postar em tempo real, gerou uma repercussão orgânica forte pós-festa.” Além disso, Kasu observa como o ambiente influencia: “Luz alta faz a pessoa se sentir exposta, um palco alto faz se sentir pequeno, e por aí vai.”
Mas será que isso é mesmo novo?
Vale lembrar que toda geração reclama da geração seguinte. DJs e clubbers veteranos falam com nostalgia dos tempos em que ninguém ficava virado para o DJ, ou que se dançava sem pensar na foto. Mas nem todo passado foi glorioso – e nem todo presente é apático. O que há, talvez, é uma transição de códigos: novas formas de estar na noite, novos pactos sociais, novas prioridades. A crítica à imobilidade da pista pode ser apenas mais um capítulo da velha disputa entre o que era e o que está por vir.
Dançar é um dos poucos gestos que não precisa de nada além de vontade. E essa vontade continua presente, mesmo que camuflada por telas, ansiedades ou expectativas. A pista de dança ainda está lá – literal ou simbólica – esperando quem queira se entregar ao momento. O que está em jogo, no fundo, é menos sobre dançar e mais sobre permitir-se. Se vamos dançar como ninguém está vendo, talvez a primeira etapa seja parar de olhar tanto.