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    O que está por trás da crise da Burberry?

    Entre o ponto de partida e o desvio de rota, fazemos um apanhado de fatos sobre como Burberry busca voltar a ser relevante novamente em meio a uma crise global.

     

    O que está por trás da crise da Burberry?

    Entre o ponto de partida e o desvio de rota, fazemos um apanhado de fatos sobre como Burberry busca voltar a ser relevante novamente em meio a uma crise global.

     

    POR Gabriel Fusari

    Nos anos 2000, era comum ver o xadrez-assinatura da Burberry cruzando a linha do trem, no camelô da feira, nas vitrines da 25 de Março ou nos bonezinhos de aba reta dos funks de São Paulo. A padronagem virou sinônimo de status e desejo periférico. O que era símbolo de aristocracia britânica foi traduzido em estética. O mesmo aconteceu na Rússia pós-União Soviética: no vácuo do comunismo, o consumo da Burberry cresceu abruptamente entre a nova elite russa, e a marca se espalhou como uma assinatura de ascensão social.

    Esse passado, porém, foi visto como um problema dentro da própria casa. Nos últimos 15 anos, a empresa passou a evitar a imagem de luxo acessível. A estratégia era clara: deixar de lado a popularidade e reposicionar a marca em um campo de luxo extremo. Para isso, lançou-se em um movimento de rebranding que envolveu mudanças radicais: nova logo, novas cores, parcerias com designers influentes e cortes profundos em sua identidade histórica.

    Christopher Bailey, que foi diretor criativo da Burberry de 2004 a 2018, em torno de modelos homens.
    Christopher Bailey, que foi diretor criativo da marca de 2004 a 2018.

     

    Riccardo Tisci foi o nome escolhido para liderar essa transição. Ex-Givenchy, amigo de celebridades, e conhecido por seu estilo entre o gótico suave e o streetwear, ele se juntou ao designer gráfico Peter Saville para revisar a linguagem visual da Burberry. A nova logo, inspirada em uma canvas de 1908, abandonava as serifas clássicas e se tornava mais neutra. Surgia também o monograma TB, uma referência a Thomas Burberry, desenhado com faixas e sobreposições de cor. Era o início de uma era mais visualmente limpa, mas também mais distante da origem funcional e britânica da marca.

    O problema é que, ao tentar se adaptar às tendências de luxo contemporâneo e agradar a um novo público global, a Burberry se afastou de seu ponto de partida. O trench coat e a gabardine (símbolos de resistência ao tempo e à água) deram espaço para coleções que não conseguiam equilibrar tradição e novidade. O público se confundia. O lucro crescia, mas a identidade se diluía.

     

    Riccardo Tisci no desfile da Burberry, de Verão 2023
    Riccardo Tisci no desfile da Burberry, de Verão 2023.

     

    Durante esse período, a empresa também enfrentou críticas ao seu modelo de negócios. Em 2018, foi revelado que mais de R$141 milhões em mercadorias foram incinerados para evitar a desvalorização dos produtos ou o risco de falsificações. Ao tentar preservar sua exclusividade, a marca acabava destruindo o que não era vendido. Ao mesmo tempo, campanhas com foco na sustentabilidade tentavam reconstruir a imagem institucional. A incoerência entre o discurso e a prática começava a pesar.

    Em 2022, a tentativa de reorganização ficou ainda mais evidente. Riccardo Tisci deixou o cargo e Daniel Lee assumiu a direção criativa. Conhecido por seu trabalho na Bottega Veneta, Lee anunciou mudanças no Instagram: o cavalo de 1910 voltava, o logo ganhava uma nova tipografia serifada e o tom geral se aproximava de um discurso mais contido, quase nostálgico. A estratégia parecia mirar em um retorno ao “quiet luxury”, com mais foco na funcionalidade do que na imagem.

     

    Uma das primeiras propagandas da era Lee, lançada em 2022
    Uma das primeiras propagandas da era Lee, lançada em 2022

     

    Atualmente, com o mercado de luxo atravessando um período de retração — marcado por uma desaceleração nas vendas globais e pelo impacto das novas taxações da gestão de Donald Trump sobre produtos importados — a crise interna da Burberry se intensificou. As tarifas, que afetaram diretamente marcas europeias com forte presença no mercado norte-americano, como a própria Burberry, elevaram o custo de distribuição nos EUA, um dos principais mercados de consumo de luxo. Ao mesmo tempo, a desaceleração econômica da China e a alta inflação na Europa reduziram a demanda por itens premium. Com a mudança drástica no comportamento do consumidor, somada à queda no desempenho das marcas de luxo, tornou-se necessário intensificar a reestruturação da Burberry.

    Como primeiro passo, a estratégia seguiu com cortes de cargos. Em maio de 2025, a Burberry anunciou um plano de demissão que deve economizar 100 milhões de libras por ano. Nesse passaralho, ninguém escapou: da alta cúpula da empresa aos funcionários do turno noturno das fábricas em Castleford, na Inglaterra, todos foram desligados. A notícia impulsionou as ações da marca. A valorização no mercado financeiro, no entanto, não apaga o contexto: trata-se de uma empresa em crise de identidade, tentando ajustar contas e discurso ao mesmo tempo.

    Ainda nesse processo de organizar a casa, o atual CEO Joshua Schulman (com passagens por Coach e Michael Kors) afirmou que nessa nova fase o foco voltará a ser a produção de peças de uso externo, como trench coats, lenços e biquínis. O foco deixa de estar em bolsas de luxo e em em roupas de nicho, com atenção apenas em itens como camisas polo e vestidos com a estampa xadrez. Afinal, esse padrão é o símbolo da expertise da marca britânica. Também está nos planos a redução no número de pontos de venda e uma reorganização dos horários de funcionamento das lojas, para alinhar a operação aos picos de maior consumo.

    O momento atual é de retorno: ao início, às raízes, ao ponto em que o tecido gabardine foi criado para resolver um problema prático. Retorno à funcionalidade como linguagem. A Burberry tenta se reposicionar sem ruído, mas ainda precisa encarar os erros de uma década em que desejou ser o que não era  e pagou por isso com a própria relevância. Se vai dar certo, ainda é cedo para dizer. Mas o caminho, desta vez, parece mais próximo do que fez da Burberry o que ela foi, antes de tentar ser outra – ou uma nova – coisa.