O que está por trás da crise da Burberry?
Entre o ponto de partida e o desvio de rota, fazemos um apanhado de fatos sobre como Burberry busca voltar a ser relevante novamente em meio a uma crise global.
O que está por trás da crise da Burberry?
Entre o ponto de partida e o desvio de rota, fazemos um apanhado de fatos sobre como Burberry busca voltar a ser relevante novamente em meio a uma crise global.
Nos anos 2000, era comum ver o xadrez-assinatura da Burberry cruzando a linha do trem, no camelô da feira, nas vitrines da 25 de Março ou nos bonezinhos de aba reta dos funks de São Paulo. A padronagem virou sinônimo de status e desejo periférico. O que era símbolo de aristocracia britânica foi traduzido em estética. O mesmo aconteceu na Rússia pós-União Soviética: no vácuo do comunismo, o consumo da Burberry cresceu abruptamente entre a nova elite russa, e a marca se espalhou como uma assinatura de ascensão social.
Esse passado, porém, foi visto como um problema dentro da própria casa. Nos últimos 15 anos, a empresa passou a evitar a imagem de luxo acessível. A estratégia era clara: deixar de lado a popularidade e reposicionar a marca em um campo de luxo extremo. Para isso, lançou-se em um movimento de rebranding que envolveu mudanças radicais: nova logo, novas cores, parcerias com designers influentes e cortes profundos em sua identidade histórica.

Riccardo Tisci foi o nome escolhido para liderar essa transição. Ex-Givenchy, amigo de celebridades, e conhecido por seu estilo entre o gótico suave e o streetwear, ele se juntou ao designer gráfico Peter Saville para revisar a linguagem visual da Burberry. A nova logo, inspirada em uma canvas de 1908, abandonava as serifas clássicas e se tornava mais neutra. Surgia também o monograma TB, uma referência a Thomas Burberry, desenhado com faixas e sobreposições de cor. Era o início de uma era mais visualmente limpa, mas também mais distante da origem funcional e britânica da marca.
O problema é que, ao tentar se adaptar às tendências de luxo contemporâneo e agradar a um novo público global, a Burberry se afastou de seu ponto de partida. O trench coat e a gabardine (símbolos de resistência ao tempo e à água) deram espaço para coleções que não conseguiam equilibrar tradição e novidade. O público se confundia. O lucro crescia, mas a identidade se diluía.

Durante esse período, a empresa também enfrentou críticas ao seu modelo de negócios. Em 2018, foi revelado que mais de R$141 milhões em mercadorias foram incinerados para evitar a desvalorização dos produtos ou o risco de falsificações. Ao tentar preservar sua exclusividade, a marca acabava destruindo o que não era vendido. Ao mesmo tempo, campanhas com foco na sustentabilidade tentavam reconstruir a imagem institucional. A incoerência entre o discurso e a prática começava a pesar.
Em 2022, a tentativa de reorganização ficou ainda mais evidente. Riccardo Tisci deixou o cargo e Daniel Lee assumiu a direção criativa. Conhecido por seu trabalho na Bottega Veneta, Lee anunciou mudanças no Instagram: o cavalo de 1910 voltava, o logo ganhava uma nova tipografia serifada e o tom geral se aproximava de um discurso mais contido, quase nostálgico. A estratégia parecia mirar em um retorno ao “quiet luxury”, com mais foco na funcionalidade do que na imagem.

Atualmente, com o mercado de luxo atravessando um período de retração — marcado por uma desaceleração nas vendas globais e pelo impacto das novas taxações da gestão de Donald Trump sobre produtos importados — a crise interna da Burberry se intensificou. As tarifas, que afetaram diretamente marcas europeias com forte presença no mercado norte-americano, como a própria Burberry, elevaram o custo de distribuição nos EUA, um dos principais mercados de consumo de luxo. Ao mesmo tempo, a desaceleração econômica da China e a alta inflação na Europa reduziram a demanda por itens premium. Com a mudança drástica no comportamento do consumidor, somada à queda no desempenho das marcas de luxo, tornou-se necessário intensificar a reestruturação da Burberry.
Como primeiro passo, a estratégia seguiu com cortes de cargos. Em maio de 2025, a Burberry anunciou um plano de demissão que deve economizar 100 milhões de libras por ano. Nesse passaralho, ninguém escapou: da alta cúpula da empresa aos funcionários do turno noturno das fábricas em Castleford, na Inglaterra, todos foram desligados. A notícia impulsionou as ações da marca. A valorização no mercado financeiro, no entanto, não apaga o contexto: trata-se de uma empresa em crise de identidade, tentando ajustar contas e discurso ao mesmo tempo.
Ainda nesse processo de organizar a casa, o atual CEO Joshua Schulman (com passagens por Coach e Michael Kors) afirmou que nessa nova fase o foco voltará a ser a produção de peças de uso externo, como trench coats, lenços e biquínis. O foco deixa de estar em bolsas de luxo e em em roupas de nicho, com atenção apenas em itens como camisas polo e vestidos com a estampa xadrez. Afinal, esse padrão é o símbolo da expertise da marca britânica. Também está nos planos a redução no número de pontos de venda e uma reorganização dos horários de funcionamento das lojas, para alinhar a operação aos picos de maior consumo.
O momento atual é de retorno: ao início, às raízes, ao ponto em que o tecido gabardine foi criado para resolver um problema prático. Retorno à funcionalidade como linguagem. A Burberry tenta se reposicionar sem ruído, mas ainda precisa encarar os erros de uma década em que desejou ser o que não era e pagou por isso com a própria relevância. Se vai dar certo, ainda é cedo para dizer. Mas o caminho, desta vez, parece mais próximo do que fez da Burberry o que ela foi, antes de tentar ser outra – ou uma nova – coisa.