IB Kamara: “A linguagem visual não é um gosto ocidental. Todo povo tem bom gosto”
Stylist e diretor criativo da Off-White, o africano que está mudando o centro do poder criativo da moda fala ao FFW sobre decolonização estética, representatividade global e talento brasileiro.
IB Kamara: “A linguagem visual não é um gosto ocidental. Todo povo tem bom gosto”
Stylist e diretor criativo da Off-White, o africano que está mudando o centro do poder criativo da moda fala ao FFW sobre decolonização estética, representatividade global e talento brasileiro.
IB Kamara é um desses talentos únicos na moda, e por isso tão instigantes. Africano queer, como se define, nascido em Serra Leoa, ele se mudou aos 16 anos para Londres. E não demorou muito para começar a brilhar. Já na Saint Martin’s, escola que formou estilistas do porte de Alexander McQueen e John Galliano, se destacou e transformou em exposição seu projeto de conclusão de curso, que imaginava a moda masculina em 10 anos. Sua formação e sua carreira estão focadas no styling, o que não o impediu de, em 2022, assumir a direção criativa da Off-White, sucedendo o mito Virgil Abloh, com quem já trabalhava e de quem era amigo. Ao desenvolver uma estética de alcance internacional que discute relações de gênero, origem e raça a partir de um olhar politizado, Ib – abreviação de Ibrahim –, literalmente, ganhou o mundo fashionista. “Do Brasil à África, da Ásia à Europa Oriental e em qualquer outro lugar: acredito firmemente que a linguagem visual não é apenas um gosto ocidental, é um gosto global. Todas as pessoas do mundo têm bom gosto. Elas só precisam receber os recursos certos, ser incentivadas e educadas, e então, poderemos impor nossa própria estética”, diz, em entrevista à editora Carolina Vasone, sobre um movimento de descentralização do poder criativo do qual ele próprio faz parte.
Antes de comandar a Off-White, IB já havia sido editor-chefe da I-D e da Dazed, além de ter assinado o styling de desfiles, editoriais e capas das maiores às mais nichadas marcas e mídias de moda. Das Vogues América, UK e Itália, ao editorial da revista do francês Le Monde; do fanzine The Leopard, do stylist Alister Mackie, a shows da Chanel, Dior, Louis Vuitton e Kenzo, o stylist foi dominando territórios e imprimindo seu olhar decolonizador, fresh e sofisticado. Além disso, ele faz incursões no universo das artes como a exposição Soft Criminals, uma crítica ao fenômeno Trexit (Trump + Brexit), que organizou há alguns anos, além de colaborações para a revista do museu Tate Britain. Sua produção atual paralela à Off-White segue ainda a todo vapor: só nos últimos dois meses assinou o styling da Vogue UK e Vogue América, editoriais para ambas, campanha da Gucci e da Chanel.
Na próxima terça-feira (27.05), IB Kamara participa do Summit Fashion System no painel ‘A Nova Imagem de Moda: Como construir revelância em um mundo de reproduções instantâneas’, no Rio de Janeiro, cidade que já visitou algumas vezes. Com mediação de Augusto Mariotti, diretor de redação do FFW, o painel ainda terá a participação de Marie Gomis-Trezise, diretora criativa da Nataal Media. A primeira edição do evento será parte da programação no Rio2C, no Rio de Janeiro. Confira a aqui programação na íntegra aqui.
Em uma conversa franca, IB reflete sobre o futuro da moda e os caminhos que vêm se abrindo para uma nova geração de talentos ao redor do mundo. Ele fala da importância de descentralizar a criatividade, dos desafios à frente da Off-White, da fluidez de gênero nas roupas e ainda elogia o talento e a visão dos profissionais brasileiros, que segundo ele, estão entre os mais respeitados do mundo.
FFW: Li numa entrevista sua no New York Times você contando que decidiu aceitar ser diretor criativo da Off-White porque acreditava que Virgil Abloh tenha criado uma nova expressão do que a moda pode ser para uma nova geração, e que é muito importante que isso continue, que se trata de um conceito, e que esse conceito pode evoluir. Como tem sido essa evolução até agora com você à frente da marca?
IB Kamara: Definitivamente essa missão impulsionou meu gosto, impulsionou a maneira como vejo o mundo, como interajo com o mundo, o tipo de coisa que quero fazer. Além disso, é a primeira vez que me expresso nesse tipo de escala em termos de design de roupas. Estou desenvolvendo meu ponto de vista e minha estética como designer diante de um público global. E, às vezes, isso não é o mais fácil, mas também me estimula a realmente pensar fora da caixa e manter a criatividade no máximo, arriscar e não ter medo de nada. E acho que é isso que a Off-White é. Passei a valorizar ainda mais o corpo da mulher. Mais a moda masculina, a forma como me visto, como vejo as roupas e as pessoas. Talvez também tenha feito com que eu encontrasse um novo respeito pelas roupas em termos de tecidos, em termos de design, em termos do nível de trabalho necessário para fazer uma peça, e como vender essa peça para o mundo comercialmente. Também treinou muito minha mente sobre como eu vendo um produto, sabe, é diferente quando você está criando um estilo para uma revista do que quando você tem que vender um conceito criativo. Então, isso realmente expandiu meu gosto e enriqueceu minha narrativa.
Você poderia dar um exemplo do que considera uma evolução do que Virgil fez e você continuou e outro exemplo de coisas que você sente que são suas?
Virgil criou um conceito incrível de que a Off-White poderia ser esse laboratório experimental, esse lugar experimental que é a cultura. E acho que é, ele empurra a cultura, questiona a cultura. O que faço como africano é misturar meus experimentos nesse laboratório, misturando streetwear com roupas ocidentais, misturadas com minha herança, misturadas com minhas referências, misturadas com minha educação. Trago meu próprio legado como um africano que vive em Londres. Sabe, o streetwear é uma máquina de cultura em movimento. É um lugar para experimentar novas ideias. É um lugar para misturar novos conceitos. Mas também, ao mesmo tempo, manter uma silhueta dentro de tudo isso. Uma marca é um pensamento, e é assim que vejo a minha evolução na Off-White. É um laboratório cheio de muitas, muitas coisas incríveis que se misturam com cultura e ciência social, misturadas com tecnologia, misturadas com muitas maneiras de nos expressarmos por meio da moda.
Quando você falou sobre valorizar o corpo da mulher e a moda masculina, isso me fez pensar no seu trabalho. Como stylist, você joga muito com os limites de gênero nas suas imagens de moda. Quando pensa em moda feminina e masculina, o que esses conceitos significam para você e como lidar com essas classificações de gênero na roupa hoje em dia?
Ao entrar na Off-White, trago essa consciência de que sou um homem africano queer criando para uma marca desejada. Meu olhar para o corpo é diferente, porque posso usar roupas ditas femininas ou masculinas — depende de como estou me sentindo. Depende do meu humor. Eu escolho o que quero vestir. Então meu armário não gira em torno do meu gênero, mas sim do meu sentir, da forma como quero me expressar. E é assim que enxergo a moda. É assim que vejo a Off-White. E é como vejo a Gen Z consumir moda. Se o terno é bom, é bom — uma menina vai querer usá-lo, assim como um menino. Se o vestido é bom e o garoto quer usar, existe espaço pra isso.
Como editor-chefe da Dazed, você teve um papel essencial em moldar a identidade global da revista nos últimos anos. Na sua visão, qual o papel das revistas impressas hoje?
Acho que as revistas impressas são emoção pura. Tocar algo ainda é uma das experiências mais bonitas que existem. É como abraçar alguém que você ama — não tem comparação com ver essa pessoa por FaceTime. A excitação do toque é outra. E com o impresso, sempre existe esse fator emocional: quando você vê seu trabalho na página, no papel.
Há trabalhos que só podem existir no papel?
Para mim, tudo pode existir em qualquer lugar. Mas existe, sim, uma conexão emocional com o impresso. Quando você toca a imagem, a experiência muda completamente. Você pode ver a foto no Instagram, mas nunca será igual a vê-la na página. É um novo ponto de vista. O cérebro, o coração, a mente se conectam de forma diferente. Porque no impresso você não passa o dedo. Você vira a página. Você para. Olha com calma. O scroll não é humano.
Como você enxerga sua contribuição na Dazed e na I-D, onde também foi editor?
O papel do editor-chefe é estar à frente da cultura. É enxergar primeiro. É correr riscos. É ter a capacidade de transformar a cultura visual. E também poder ser um pouco político, mas com gentileza — abordar temas difíceis, com profundidade. É uma engrenagem que está antes e dentro da cultura ao mesmo tempo. Porque você está contando o que ainda não foi visto e, ao mesmo tempo, absorvendo o que está sendo vivido. Na Dazed, meu papel era manter tudo fresco. Arriscar. Dei espaço pra muita gente jovem. Muita gente escreveu e fotografou para Dazed pela primeira vez. E eu não queria que a revista fosse algo elitista. Nunca me interessei por isso. Meu interesse era a comunidade e o risco.
Como você enxerga hoje a produção de moda, arte e fotografia que está sendo feita fora dos centros tradicionais? Como você acompanha esse movimento e o que te interessa nisso?
Do Brasil à África, da Ásia à Europa Oriental — acredito de forma profunda que linguagem visual não é um gosto ocidental, mas global. Todo povo tem bom gosto. O que falta muitas vezes são os recursos certos, o estímulo à educação. Podemos e devemos criar nosso próprio gosto. Nós, do Sul global, podemos reinventar o bom gosto. E esse, para mim, é o meu trabalho: reinventar o bom gosto. Não só na Europa. Mas no mundo todo. O que me encanta é ver esse movimento global de criadores de imagem e formadores de gosto. E, de verdade, a gente foi atrás dessas pessoas. Comissionamos gente de todos os cantos porque eu estava — e sigo — profundamente interessado nas linguagens visuais de diferentes partes do mundo. Porque tudo importa. E essas estéticas são belíssimas, cheias de perspectiva. São frescas, especialmente para quem consome do Ocidente.
Na Dazed, foi isso que mais me motivou: como africano, como imigrante, era fundamental que eu não fizesse uma revista só sobre Londres. Quis abrir espaço pra quem tem um sonho. Para quem quer tentar.
Tem tanto talento no Brasil, na América Latina, na África — Nigéria, África do Sul, Serra Leoa, Guiné, Gâmbia, Senegal. Tem também na China, Coreia, Japão. Pessoas com trabalhos incríveis, esperando pela oportunidade de mostrar isso no palco global. E o que elas produzem é poderoso — porque representa de verdade o lugar de onde vêm. Sem vergonha. Com orgulho. E com muito gosto. Isso, para mim, é o futuro da publicação.
Você acha que centros como Paris, Nova York e Londres estão abrindo mais espaço para criativos de outros países serem criativos de fato, ao invés de só se apropriarem dessas culturas, como foi feito no passado?
Sim. E acho que precisam abrir mais ainda. Esse é o ponto. Estão abrindo? Sim. Mas podem e devem fazer mais. Mas o mais bonito da realidade atual é que também estamos criando nosso próprio espaço. A gente não espera mais a permissão. A gente cria com os amigos, inventa linguagens próprias. O gosto não é mais de poucos. É um fenômeno global. Coletivos criativos podem surgir em qualquer lugar. E influenciar uma geração inteira. E conforme mais pessoas forem expostas à arte, moda e criatividade, vamos ver trabalhos cada vez mais radicais surgirem e mudarem tudo. Não é mais sobre Europa. O problema é que muitos lugares ainda não têm visibilidade. Nem investimento público ou apoio. Mas à medida que as economias do mundo crescem, as pessoas vão buscar referência dentro de si, dentro do seu país. Com orgulho de onde vêm.
O que você conhece do Brasil?
A música é insana. Eu queria muito falar português, quem sabe um dia? Amo a música brasileira. Para mim, é como na África — cada lugar tem sua própria expressão. O Brasil é um caldeirão de energia, beleza, otimismo, cultura e alma. Tem muita alma no Brasil. Tem profundidade. Me identifico com isso como africano. Já estive na Amazônia, num lugar super simples, só uma casinha e peixe fresco – e era tudo o que a gente precisava. Era lindo. Fui algumas vezes ao Rio também. Amo a cidade. A comida é maravilhosa. E a música, nem se fala.
Que tipo de música brasileira você gosta?
Amo o grupo Tincoãs. O som deles me toca profundamente. Me lembra casa. Me lembra igreja. Mas não uma igreja institucional, lembra mais um louvor africano. Aquela música de entrega, de espiritualidade.
Você já trabalhou com o Rafael Pavarotti. Como você vê a moda sendo feita no Brasil? Em termos de design, styling, fotografia. Como o mercado internacional enxerga os criativos brasileiros?
Há muito respeito pelo gosto brasileiro. E Raf é a prova disso. Pedro Napolinário é um fotógrafo que admiro muito também. Amo o que a Suyane Ynaya está fazendo na Elle, sendo uma mulher preta no Brasil e construindo esse imaginário. A imagem está incrível. E é muito fresca, muito interessante. Os brasileiros estão criando coisas de impacto global. É uma nova geração, mais inclusiva. É lindo ver pessoas de diferentes partes do país criando. E isso vai continuar. Jovens no Rio, em São Paulo, estão produzindo trabalhos incríveis — e isso vai ecoar no mundo.
Como compartilhar isso com o mundo? Bastam as redes sociais? Ou ainda é preciso estar em Londres, Paris, Nova York para ser visto?
Claro que valorizamos as revistas e suas plataformas. Mas a cultura vai muito além de Londres, Paris, Milão. É preciso investimento. Apoio governamental. Incentivo à indústria criativa. É preciso que o Brasil olhe para dentro, valorize sua cultura, promova seu próprio gosto. É uma das culturas mais ricas do mundo. Cheia de histórias. E com o investimento certo, mentoria e as pessoas certas ao redor, os criativos brasileiros vão competir globalmente com qualquer publicação. É totalmente possível.
Qual sua visão sobre os clichês no olhar estrangeiro para culturas periféricas como Brasil, África? E como evitar reproduzir isso, até mesmo entre nós?
É menos sobre clichê e mais sobre gosto. Você pode pegar algo do seu espaço e transformá-lo em algo incrível. Investir em educação artística vai revelar talentos capazes de convencer o mundo sobre o novo gosto. É muito mais poderoso quando o trabalho é feito por pessoas do próprio país ou região, que criam para o mundo. Se incentivarmos grandes marcas de moda brasileiras, por exemplo, as campanhas que saírem delas vão ser tão incríveis quanto qualquer outra.
Quais criativos você destacaria hoje, para a gente ficar de olho?
Pedro Napolinário (@pedronapolinario) – ele é incrível. Muito talentoso, tem uma visão muito forte, gosto apurado. Vai ser uma estrela. Erika Kamano (@erikakamano), fotógrafa japonesa e inglesa. Mente brilhante. Também gosto do trabalho da dupla Mar+Vin. São brasileiros muito talentosos. E Kristin-Lee Moolman, fotógrafa africana que admiro muito. Ela é brilhante.
Quais suas expectativas para essa nova passagem pelo Brasil?
Estou aqui para me conectar, compartilhar, aprender, inspirar – e ser inspirado. Adoro ver pessoas de outros lugares do mundo empolgadas com criatividade. Isso não é o que costuma ser oferecido para a gente. De onde venho, esperam que sejamos médicos, engenheiros. A criatividade não é incentivada. É lindo ver o Brasil oferecendo isso para sua gente. Isso é gigante. Precisamos de mentes criativas no mundo. Isso é tudo.