Como os memes estão ensinando a moda a rir de si mesma

Uma nova geração de perfis no Instagram faz piada e torna a moda mais divertida e acessível.

Como os memes estão ensinando a moda a rir de si mesma

Uma nova geração de perfis no Instagram faz piada e torna a moda mais divertida e acessível.

POR Gabriel Fusari

Durante décadas, o storytelling da moda foi tratado como um campo onde o humor não era bem vindo. Quando acontecia, era quase sempre estético — uma referência aqui, um acessório excêntrico ali — mas sempre com muitas ressalvas dos sisudos. O discurso sobre o assunto tinha que ser sempre sério, técnico, distante — como se o riso ameaçasse o prestígio. Mas as redes sociais e a cultura do meme viraram essa lógica do avesso. Uma nova geração de criadores de conteúdo tem usado o humor como ferramenta legítima para falar de moda, equilibrando crítica, informação e ironia em um formato mais acessível — e, muitas vezes, mais potente do que os que se levam muito a sério.

É o caso do croata Hanan Besovic, do perfil @ideservecouture, que desde a pandemia comenta desfiles com ironia, mas também com muito contexto histórico. “Quando faço um meme com a Elsa Schiaparelli brigando com a Coco Chanel no céu, isso veio da leitura da biografia da Elsa”, explica ele, que afirma ter muitas ideias ao ler biografias de moda. A piada, aqui, não é gratuita: ela exige repertório. Os memes não são só sobre o presente — eles carregam história e, por isso, conversam com públicos diferentes, dos curiosos aos iniciados.

O meme também é um formato de análise

Ao mesmo tempo em que esses perfis conquistam audiência e legitimidade, há uma tensão latente. Parte da moda tradicional ainda reage mal à crítica bem-humorada. Há quem confunda brincadeira com desrespeito, como se o riso enfraquecesse a análise. Mas é justamente o contrário: o humor revela o que o discurso sério muitas vezes camufla. “O meme não anula a análise. Ele é a análise em outro formato”, resume William Cruz, da pagina brasileira Maquiatristes, que também trabalha como maquiador e cabeleireiro. Na sua página, ele usa o humor para falar tanto de moda quanto das relações profissionais nos bastidores da beleza. “Vejo que existem muitas dúvidas sobre questões de trabalho e traquejo cotidiano… São coisas que não​ se aprende em cursos. Então, ensino fazendo piada”, diz. Quer um exemplo? Que tal a frase fixada como legenda de um vídeo debochado: “Eu, recebendo o comprovante de pagamento depois de ameaçar expor o cliente”?

Perfis anônimos como o BoringNotCom também mostram como é possível influenciar as narrativas a partir de dentro do mercado. Sem revelar o rosto, o criador comenta desfiles, campanhas e estratégias de marca com frases curtas, afiadas e cheias de contexto. E quando a informação é tão exclusiva — mas ao mesmo tempo tão boba — a piada é quase inevitável. Os desdobramentos sobre o relançamento da revista i-D são um exemplo. Em diversos posts ele critica o retorno do título impresso, acusando a revista de estar morta e com crise de identidade. Quando não, debocha com a situação de Maria Grazia Chiuri na Dior. ​​O impacto é direto: os seguidores compartilham, discutem, repensam. O riso, nesse caso, é só a porta de entrada para conversas mais densas, que saem das redes e acabam em rodas de bar.

O meme como forma de aproximar a moda de mais pessoas

São nessas conversas de bar que surgem os comentários sem filtro — mas, geralmente, eles ficam por lá mesmo. A vontade de levar essas opiniões para o mundo foi o que moveu o francês​ ​Lyas a criar conteúdo nas redes sociais e, depois, ser convidado pela revista Interview para atuar como comentarista. “Quando comecei a sair em Paris, percebi que todo mundo tinha uma opinião sobre moda, mas ninguém a expressava. Então decidi ser a pessoa que faria isso. Sem filtro.” Foi assim que encontrou sua voz: usando o humor para traduzir o que parecia distante e inacessível. “Meu tom de voz é muito livre. Adoro misturar humor com referências, emoções, sem regras. É a melhor forma de tornar a moda mais digerível e compreensível para muitas pessoas”, diz ele, refletindo o espírito de uma geração que não tem medo de brincar com o que antes era intocável.

Mas ele também sabe a diferença entre rir com e rir de. “Não trato a moda como uma piada. Às vezes, brinco com ela. E isso é diferente”, explica. Por trás da ironia, existe um profundo respeito pela arte e pela indústria. “Quero tornar essa indústria menos elitista. E o humor pode ajudar nisso.” Quando a emoção pede seriedade, ele atende: “Permaneço fiel ao que sinto. A arte é feita de emoções, e eu não riria de um desfile que me faz chorar.”

Catty, criador do perfil Pathetic Fashion, vai pelo mesmo caminho, mas com outra linguagem. Apaixonado por memes e pela estética do ridículo, encontrou na internet um palco perfeito para falar de moda com humor. “A moda se leva muito a sério, então gosto de brincar com isso”, diz. A piada, para ele, é mais uma forma de expressão do que uma provocação. “Não estou fingindo ser um comentarista sério. Só estou me divertindo.”

Tudo virou entretenimento, até a moda

Na sua visão, os memes são como cavalos de Troia para ideias mais sérias. “Eles tornam os assuntos mais digeríveis — e um pouco bobos — o que ajuda as pessoas a realmente se engajarem.” Para além do riso, há um pensamento afiado por trás da estética debochada. “Somos a primeira geração moldada por algoritmos. Tudo virou entretenimento, até a moda.” E, ao que tudo indica, essa lógica veio para ficar. “O humor vai continuar evoluindo. As pessoas gostam de rir, especialmente de coisas com as quais se importam demais.”

Enquanto isso, o sistema da moda ainda tenta encontrar o ponto de equilíbrio entre parecer jovem e manter o controle da própria imagem e narrativa. Rir de si mesma ainda é um desafio — mas talvez o verdadeiro sinal de inteligência seja outro: saber rir de si mesma, entender a crítica embutida na piada — e transformar isso em potencial, não em fraqueza.

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