Moda e religião: entre a provocação e a reverência
Entre cruz, véus e santos, como estilistas interpretam as iconografias religiosas em suas criações.
Moda e religião: entre a provocação e a reverência
Entre cruz, véus e santos, como estilistas interpretam as iconografias religiosas em suas criações.
A repercussão da morte do papa Francisco, seguida de todas as especulações sobre sua sucessão e o início do conclave na última quarta (07.05), para a escolha do nome que será a próxima autoridade máxima da igreja católica, nos faz pensar sobre a relação antiga e multifacetada entre moda e religião, neste caso mais especificamente, da moda com a igreja católica. Se, por um lado, estilistas usam frequentemente a iconografia religiosa para questionar o conservadorismo associado a algumas religiões, por outro, a estética e o simbolismo do universo sagrado exercem fascínio histórico sobre esses criadores. Em ambos os casos, iconografias cristãs ultrapassam o círculo dos fiéis e se infiltra no imaginário coletivo por meio das passarelas, e também dos palcos e da cultura pop.
De colaborações reais, como a do estilista francês Jean-Charles de Castelbajac, a simulações digitais que sonham vestir o papa com peças de grife, passando por desfiles e videoclipes censurados pela Igreja, muitos são os exemplos de como moda e religião mantêm um diálogo complexo — ora reverente, ora provocador, ora crítico, ora enaltecedor — que reflete as transformações culturais e sociais ao longo do tempo.
A moda veste o clero
Conhecido por suas criações coloridas e irreverentes, o estilista francês Jean-Charles de Castelbajac foi responsável por desenhar, em 1997, as vestes litúrgicas usadas pelo Papa João Paulo II e seu clero durante as Jornadas Mundiais da Juventude, em Paris.
Em 2024, ele voltou a unir moda e fé ao assinar os trajes litúrgicos da reabertura da Catedral de Notre-Dame, na mesma cidade.
O Papa Francisco e a jaqueta viral de IA
Em março de 2023, uma imagem gerada por inteligência artificial mostrando o Papa Francisco usando uma jaqueta doudone branca volumosa — em um estilo que remetia ao da Moncler — viralizou nas redes sociais. Criada por meio da ferramenta Midjourney pelo artista digital Pablo Xavier, de Chicago, a imagem confundiu milhares de internautas e até mesmo grandes veículos de mídia.
Da igreja para o cinema
O que podemos aprender com o figurino criado para o filme Conclave (2024) pela alemã Lisy Christl quando se fala em simbologia de ícones do alto clero? Que o tipo de cruz que cada cardeal leva no pescoço, incluindo material, modelo e ornamentos, dá indício de seu posicionamento na igreja, seja de simplicidade, progressista, conservador ou de opulência. Já o vermelho dos hábitos e capas dos religiosos, a figurinista confessa: é mais escuro do que tom alaranjado usado atualmente no Vaticano da vida real.
O caso dos sapatos vermelhos
Em 2005, a revista Newsweek publicou que os sapatos vermelhos do Papa Bento XVI seriam assinados por Miuccia Prada. A notícia foi desmentida pelo Vaticano, que atribuiu o calçado a Adriano Stefanelli, sapateiro de Novara, na Itália, também responsável pelos pares de João Paulo II.
Na lista dos mais bem-vestidos
Em 2007, a revista Esquire colocou Bento XVI em sua lista de homens com os melhores acessórios do mundo, destacando os sapatos escarlates. A estética opulenta contrastava com a do sucessor: o Papa Francisco adotou sapatos pretos simples, reforçando sua imagem de humildade.
O Papa de John Galliano na passarela da Dior
Na coleção de alta-costura Inverno 2000 da Dior, John Galliano representou um Cardeal na passarela em um espetáculo à altura de seu imaginário delirante. A abertura era uma espécie de casamento, com tudo que o ritual exige — véu, drama e elegância —, mas o amor aqui era só fachada. O que Galliano queria mesmo era falar de desejo e fetiche. Na época, críticos dividiram-se entre o deslumbramento e a provocação diante da apropriação do sagrado.
Jean Paul Gaultier, 2007, alta-costura
O estilista, famoso por sua postura provocadora, vestiu todas as modelos de Virgem Maria – incluindo o halo de santa – no seu desfile de alta-costura para o verão 2007, incluindo a dançarina burlesca Dita Von Teese.
Boy George canta Church of the Poison Mind
Em 2020, Boy George encerra o desfile de 50 anos de carreira de Gaultier fazendo uma provocação, mesmo que indireta (a letra da música não é uma crítica religiosa).
As iconografias católicas na Dolce & Gabbana
A marca italiana talvez seja a que mais reverencia os ícones católicos em suas coleções, com imagens, cruzes e outros elementos iconográficos como o véu de rendas usados pelas carpideiras sicilianas. Num dos looks,”Devoção à moda” aparece estampado.
O MET Gala e a moda celestial
Em 2018, o Metropolitan Museum of Art, em Nova York, promoveu a exposição Heavenly Bodies: Fashion and the Catholic Imagination, dedicada à influência da religião na moda. A mostra reuniu cerca de 40 peças eclesiásticas da Capela Sistina — nunca exibidas fora do Vaticano — e mais de 150 criações assinadas por nomes como Donatella Versace, John Galliano e Cristóbal Balenciaga. A iniciativa provocou debates sobre apropriação cultural, mas também foi celebrada como um tributo à força visual do catolicismo. Com 1.659.647 visitantes, tornou-se a exposição mais visitada da história do museu.
Madonna e a iconografia religiosa na cultura pop
Embora não seja estilista, poucos lançaram moda como Madonna. Sua relação com a igreja católica é antiga e conturbada, por isso ela entra como menção especial. No videoclipe de Like a Prayer (1989), dirigido por Mary Lambert, a cantora aparece com estigmas, beija um santo negro e dança diante de cruzes em chamas — imagens que provocaram forte reação da Igreja. O Vaticano condenou publicamente o vídeo, e grupos católicos pressionaram pela sua retirada do ar. A repercussão levou ao rompimento de um contrato milionário da artista com a Pepsi, embora ela tenha mantido o cachê de milhões.