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    Tropical Nazi
    Tropical Nazi
    POR Redação

    Imagem racionalista feita entre 1925 e 1926 pelo fotógrafo húngaro e professor da escola de Bauhaus, László Moholy-Nagy (1895/1946) ©Reprodução

    Quando estudei a fotografia da época do fascismo, a lição que aprendi foi a de que as mesmíssimas forças que conceberam uma louvável produção artística criaram uma grave violência contra a humanidade. O racionalismo na fotografia criou imagens de homens iluminados, homens do futuro. E, ao mesmo tempo, provocou uma ojeriza a qualquer coisa que não fosse “adequada” ao céu estrelado da modernidade, onde os homens são civilizados ao extremo, disciplinados ao extremo, poderosos ao extremo, brancos ao extremo.

    E o que foi aquilo? Foi a vontade de ser moderno. O que isso tem a ver com o Brasil de hoje? Tudo. Porque vivemos uma fase em que tudo borbulha e o mundo nos observa. Muitos de nós temos a pretensão de sermos o país do futuro, o que é positivo. Mas essa mesma força de orgulho nacional tem um lado negro, que é conservador e cego. No ano passado me veio em mente esse termo: Tropical Nazi.

    Tropical Nazi é o tipo de ser humano que o Brasil está produzindo, paralelamente a coisas maravilhosas. A mesma força que faz um país querer crescer tem impulsionado comportamentos ditatoriais. Como quem não sabe onde é o Afeganistão, mas fica indignado se um estrangeiro pensa que a capital do Brasil é Buenos Aires. Como aquela que topa pegar ônibus na Europa, mas diz que a médica cubana tem “cara de empregada”.

    A obra “Abaporu”, pintada por Tarsila do Amaral em 1928, e que é uma das principais referências do movimento antropofágico, que se propunha a deglutir a cultura estrangeira e adaptá-la ao Brasil ©Reprodução

    E na moda, infelizmente, o Tropical Nazi acabou de aparecer, acusando estilistas de serem “pouco brasileiros” para receberem dinheiro do governo. Cheira a fascismo. Não estamos aqui para julgar se Alexandre Herchcovitch e Pedro Lourenço deveriam ou não receber a quantia que receberam. O que suscita uma certa aflição é o fascismo batendo à nossa porta. Logo aqui. Pera lá, gente! Quem é mais brasileiro e quem é menos? Vamos voltar ao tempo: de que cores e origens eram as pessoas que construíram, na marra ou com vontade, o que hoje se chama de Brasil? Várias.

    O orgulho nacional se infla quando Gisele Bündchen aparece nos noticiários. O sobrenome dela não vem de uma tribo tupi. Ela é menos brasileira? Quem passou a adolescência ouvindo rock inglês e não samba, não é brasileiro? Quem estuda moda a sério sabe considerar, e admirar, o estilo parisiense. Quem leva uma vida criativa a sério sabe que a faísca da inspiração pode aparecer em qualquer lugar. Como vamos arrancar isso de nossos desejos e nos obrigarmos a produzir coisas que acreditamos serem puramente regionais? Se não formos folclóricos não vale? É possível, hoje, seguir um purismo? Ou é a nossa eterna antropofagia, o devorar o que vem de fora, que deixa a gente ser lindo, interessante, maleável, espontâneo?  “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”, entre outras frases para serem revistas do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, em 1928.

    Vivemos uma inebriante busca de nossa identidade. E não é criando a cota do mais ou menos brasileiro que vamos finalmente nos libertar de uma mágoa pós-colonialista.

    Coleção africana que Yves Saint Laurent criou em 1967 ©Reprodução

    Como vamos construir uma história verdadeira do nosso estilo se procurarmos o purismo? Nem tornando às tribos indígenas. O isolamento cultural nunca existiu. Pensemos na lendária coleção africana de Yves Saint Laurent. Vestidos com motivos africanos, feitos com miçangas de madeira e em formatos de dente de animais e conchas do mar. Se houve policiamento dos que acharam aquela moda “pouco francesa”, felizmente não foi forte o bastante para interromper o legado desse nome, até hoje um importante ponto de referência. Podemos filosofar mais: quem faz o estilo italiano, por exemplo? Prada, Versace ou Valentino? Todas essas, ainda que não tenham nenhum ponto em comum. Mas certamente o governo da Itália, o povo, a crítica, os consideram igualmente italianos. Por que não podemos então considerar, ou dar a chance, de que sejam genuínos expoentes da moda brasileira Ronaldo Fraga, Alexandre Herchcovitch e Pedro Lourenço?

    Melhor deixar todas as portas das nossas cabeças abertas e apoiar qualquer impulso criativo. Nunca se sabe quem vai ser o próximo YSL. Se um jovem estilista promissor brasileiro achar apaixonante desfilar na Austrália, ou Japão, que vá. E brilhe! E que no futuro ninguém se lembre de que o Tropical Nazi existiu, mas sim de que a nossa moda é a nossa cara, ainda que branca, preta, amarela, cheia de tachinhas, miçangas, ou tudo.

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